A lua cheia já descambou para o poente.
Já se foi o primeiro cantar dos galos,
E a Estrela Dalva,
Que não é planeta,
Mas pinga de engenho
E das boas, já achegou ao fim,
E é a terceira da noite,
Sinal que se chegará à quinta.
Ré Menor.
O acorde enche o Largo do Tizeco,
Quebrando o silêncio da madrugada.
Mário Cigano não é um virtuoso,
Mas é um ótimo seresteiro.
A voz do cantor, temperada pelo gole,
Entra meio atravessada,
Obrigando ao Mário um arranjo improvisado.
“Acorda minha bela namorada.
A lua nos convida a passear...”.
Ascende-se a luz
Suspiros se ouvem,
E o cheiro de mulher bonita
Sai pelas frestas da janela
E se misturam aos acordes do violão,
Embalando a valsa apaixonada
Do namorado seresteiro.
Olhos indiscretos se revezam
No buraco da fechadura
Para verem o proibido:
Simples roupas de dormir,
Com alguns centímetros de perna
E a fugaz visão do colo,
E, no mais, a fantasia,
Desaguando em solitário prazer
No escurinho do pé de baru,
Que reina majestoso
Sobre a vastidão do largo.
Três donzelas;
Três namoradas;
Três valsas;
Três cantores
E um bando de enamorados.
Aqui e ali,
Um poema de Augusto dos Anjos
Para quebrar a monotonia
E dar à serenata ares de cultura:
“Vês?... Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera”...
Em cada casa, uma janela.
Em cada janela, um suspiro de amor.
E uma jovem embevecida,
Coração saltando do peito
Diante da canção tão reveladora
Ou do poema significativo.
Ao final,
As luzes se apagam
E pela janela entreaberta
Um lenço branco acenando
Mudo agradecimento.
Segue o cortejo
Em busca de outras janelas.
Em fila pela rua,
Garrafa de boca em boca;
Um repasse no violão
Ensaio da próxima canção.
Comentários em voz baixa,
A fila quase silente
– proibido algazarra –
Porque o bom da seresta
É acordar a bem-amada
Com a voz do seu cantor.
Ré Menor!
A voz do cantor se mistura
Com os acordes do violão
Na hora vermelha do amanhecer!
Hora de ir para casa
E sonhar
Sonhar... Sonhar.
[01/05/1996 |